Há uns tempos, encontrei, num livro sobre a história dos lojistas de Lisboa1, uma nota curiosa. Daniel Alves, professor de História e autor do livro, sublinhava, a dada altura, que as palavras «fiado» e «fidelizar» têm a mesma etimologia latina: ambas derivam de fides, que significa, segundo o próprio, confiança, honestidade e lealdade. Este grau de parentesco deteve-me por uns momentos. Na verdade, a relação entre cada um dos conceitos com os tais significados revelados pela etimologia fazia-me sentido. Como determinante existencial, tanto o acto de fiar como o de construir fidelidade depende de confiança, honestidade e lealdade. Até aqui, tudo pacífico. Porém, nunca me tinha ocorrido colocar ambos os conceitos num mesmo comprimento de onda, como agora a etimologia e Daniel Alves me obrigavam a fazer. E tal perspectiva parecia-me um tanto ou quanto dissonante. Pensemos: se, por um lado, se tornou comum vermos o termo «fiado» envolto em conotações negativas, a «fidelização» é, por outro, objectivo capital no mundo das marcas. Mais, se advertir a desfavor do fiado se afirmou como um dos motes mais prolíficos da poesia popular, imortalizado em letreiros e azulejos sempre bem destacados aos balcões do comércio tradicional (não raras vezes com o expressivo Zé Povinho à mistura), as estratégias de fidelização são responsáveis pelas mais volumosas fatias de investimento nas folhas de cálculo da gestão empresarial. Resumindo, enquanto um se evita determinantemente, o outro, deseja-se ardentemente. E, nesse sentido, vê-los lado a lado, a partilharem origens, causou-me alguma estranheza.


Para ser honesto, não é necessária uma reflexão muito profunda, nem imaginação fértil, para adivinhar como estes dois conceitos terão, apesar da génese comum, acabado em polos opostos. Bastou que a tal confiança, honestidade e lealdade, essencial a qualquer fiado, tenha sido mais vezes quebrada do que honrada. Nada de misterioso. Mas se esta lógica descomplicada resolvia a dissonância superficial, o binómio fiado-fidelização continuava a desafiar-me.


Daniel Alves referia a curiosidade etimológica a propósito da actividade dos lojistas de Lisboa entre o final do século XIX e o início do século XX: por essa altura, o fiado era um recurso recorrente para fidelizar a clientela. Mais importante, tal como provam as referências ao jornal O Lojista que Alves recupera, o fiado era uma função social essencial, exercida pelos donos das lojas a favor de uma classe operária necessitada2. Tal não era, naturalmente, livre de segundas intenções: ao fazê-lo, os lojistas procuravam conquistar a clientela da qual dependiam. Mas, é justo sublinhar, vender fiado implicava assumir um risco que não oferecia qualquer garantia de retorno, nem qualquer contrapartida directa. Tratava-se apenas de colocar as necessidades dos clientes em primeiro lugar e esperar que o reconhecimento de tal generosidade desse frutos. E nesta humana simplicidade, encontrei a estranheza que me deteve naquela página em particular.

(...) é justo sublinhar, vender fiado implicava assumir um risco que não oferecia qualquer garantia de retorno, nem qualquer contrapartida directa.

Tratava-se apenas de colocar as necessidades dos clientes em primeiro lugar e esperar que o reconhecimento de tal generosidade desse frutos.

Pensemos no presente

Quando olhamos para os programas de fidelização a que, hoje, as marcas recorrem, encontramos alguns princípios aparentemente semelhantes. Mas é, de facto, só aparência. Numa análise superficial, entre pontos, descontos e bónus, são muitos os modelos em que se oferecem, efectivamente, benefícios ao consumidor, em troca da sua assiduidade como cliente. Porém, é também verdade que a grande maioria destes programas pressupõe contrapartidas directas: períodos de permanência obrigatória (com penalizações pesadas se quebrados), descontos indirectos (apenas válidos numa compra seguinte), utilização de dados para publicidade e por aí adiante. Nem de propósito, enquanto escrevia este texto, recebi uma carta para renovar a minha adesão a um programa de fidelização de uma conhecida marca que pressupunha o pagamento de um valor para o efeito. Os benefícios compensam largamente o valor solicitado, mas, se pensarmos friamente, o princípio não deixa de ser paradoxal, afinal é exigido ao consumidor que pague para se fidelizar à marca. Na minha ingenuidade, diria que qualquer marca deveria querer pagar por um cliente fidelizado, não o contrário; conquistar a sua lealdade, não pedir-lhe para pagar por ela. Mas, na verdade, este caso em particular reflecte, na perfeição, aquele que é o paradigma que hoje impera: no geral, entre o que pedem e o que oferecem, os programas de fidelização em voga não são necessariamente trocas injustas, mas não são, também, comparáveis ao risco que incorriam os lojistas do final do século XIX para fidelizar clientela. Por outras palavras, colocar como hipótese perdas efectivas — o vender fiado — já não faz parte da equação do marketing moderno.


Historicamente, os programas de fidelização surgiram com o marketing relacional, que, algures pelo final do século XX, se assumiu como alternativa ao marketing transaccional e ao seu modelo orientado para o produto3. Começava-se, então, a olhar para a mais sinuosa relação individualizada entre organização e consumidor, substituindo, assim, a visão estritamente funcional que até aí imperava. Neste novo paradigma, a fidelização, genericamente falando — a construção de relações duradouras —, surgia naturalmente como factor crítico de sucesso. Ideia bem suportada, inclusive, por argumentos económicos objectivos: Deborah Asbrand salientou, num artigo de 1997, que o custo de cativação de novos clientes pode ser substancialmente superior — de quatro a oito vezes — ao de reter os actuais4. Daqui até ao desenho dos programas de fidelização que todos conhecemos, foi um salto curto e natural.


Contudo, não obstante a importância inegável deste tipo de estratégia para a saúde financeira das organizações, a forma cautelosa como tais programas são hoje construídos fica aquém do propósito que servem. Conquistar consumidores requer mais do que uma troca directa, por mais justa que esta possa ser. É preciso encantá-los, como diriam Carlos Melo Brito e Paulo de Lencastre5. Recordemos que na relação entre lojista e freguês, os comerciantes investiam, à confiança, nas necessidades dos clientes para, assim, os fidelizar. No mesmo sentido, a Tesla não teve ganhos directos quando em 2017, na iminência da chegada do furacão Irma à costa da Flórida, desbloqueou a autonomia das baterias de todos os seus automóveis para ajudar nos esforços de retirada dos seus consumidores6. E, já agora, o que dizer dos produtores de farinha norte-americanos que, nos difíceis anos 30, ao perceberem que a população empobrecida usava o tecido em que, por essa altura, a farinha era vendida, para costurarem roupa, passaram a embalar as suas farinhas em sacos com padrões coloridos e muito variados? O que estas marcas têm em comum é uma perspectiva positiva sobre como criar relações duradouras. Adicionam valor para fidelizar clientes. No fundo, vendem fiado. E ao fazerem-no, correm o sério risco de conquistar clientes para a vida.


Talvez hoje seja tarde demais para reabilitar o termo «fiado». Mas o princípio, não: as marcas precisam de fiar para fidelizar. Investir sem garantias e esperar retorno pelo reconhecimento de tal generosidade. É uma questão de fé? Talvez. Mas, curiosamente, fé está, também, na origem de «fiado» e, mais importante, de «fidelização».



NOTAS

1. A República atrás do balcão: os Lojistas de Lisboa e o fim da Monarquia (1870-1910). Chamusca: Edições Cosmos.

2. O Lojista, n.º 29, 24 de Abril de 1892; n.º 30, 30 de Abril de 1892 e n.º72, 21 de Setembro de 1893. Ver Alves, 2012, p. 247.

3. Antunes & Rita, 2008.

4. Asbrand, 1997.

5. Brito & Lencastre, 2000.

6. Vale a pena ler a história completa: observador.pt/2017/09/10/tesla-ajuda-na-fuga-ao-furacao-irma-sabe-como

BIBLIOGRAFIA

Alves, D. (2012). A República atrás do balcão: os Lojistas de Lisboa e o fim da Monarquia (1870-1910). Chamusca: Edições Cosmos.

Antunes, J. & Rita, P. (2008). O marketing relacional como novo paradigma: uma análise conceptual. Revista Portugueses e Brasileira de Gestão, 7(2), 36-46.

Asbrand, D. (1997). Is your automated customer service killing you? Datamation, 43(5), 62-67.

Brito, C. M., & Lencastre, P. D. (2000). Os Horizontes do Marketing. Lisboa: Verbo.

Campos, J. (2019). Marca Positiva. Lisboa: Influência.