Nota prévia: como muitos saberão, o Design é uma actividade difícil de balizar. Entre vocações técnicas altamente diversificadas e tentáculos bem firmados em áreas muito distintas (que vão da aplicação comercial à intervenção social), são muitas e variadas as responsabilidades do Design. Esta reflexão em particular centra-se numa das expressões do Design mais importantes na actividade das organizações — o design de comunicação —, naquela que é a sua função principal: comunicar, claro está.
Programa mínimo
Comecemos pelo básico: o programa mínimo, chamemos-lhe assim. No papel de agente no processo de comunicação, o Design tem como missão primária contribuir para que a mensagem, entendida em sentido lato e abstracto, chegue ao destinatário (vulgo público-alvo). E, depois, que seja por ele eficazmente descodificada. No fundo, um pouco como todas as disciplinas envolvidas nesta equação particular que é a Comunicação.
Para cumprir tal predicado, o designer dispõe de um conjunto de ferramentas versátil e muito próprio — cor, tipografia, imagem e por aí adiante —, pronto a ser trabalhado e amplamente explorado. Até aqui, nada de estranho. Trata-se de uma descrição muito simplificada daquilo que costumo apelidar de vertente táctica do Design (e que se apoia sobretudo nos meios técnicos de que a prática profissional do Design dispõe). Sem o domínio destas ferramentas, qualquer designer está seriamente debilitado. Hierarquizar informação, entender os fundamentos da teoria da cor ou pensar a organização do espaço fazem parte das competências básicas que cada profissional de design deve assegurar. Mais uma vez, nada de estranho aqui. Contudo, se este é um primeiro passo, não é de todo suposto que seja o último. Pelo contrário. Pensemos num exemplo simples e fácil de extrapolar: um texto bem paginado, que se lê sem dificuldade e que, por isso, cumpre o programa mínimo, não é necessariamente um texto que comunica eficientemente. Isto é, mesmo que irrepreensível do ponto de vista da aplicação técnica, o texto pode, de facto, não ser bem sucedido naquela que é sua responsabilidade maior: propagar a mensagem. E razões para tal fenómeno, aparentemente paradoxal, não são difíceis de encontrar. Entre elas, a incapacidade de cativar o público, de o fazer interessar-se pela leitura ou de garantir que a informação fica retida depois de lida são as mais evidentes
A este respeito, uma pista curiosa chega-nos das ciências sociais. Num estudo aparentemente trivial, uma equipa de investigadores aplicou, a um grupo de 40 alunos da Universidade de Princeton, o famoso Teste de Reflexão Cognitiva, desenhado por Shane Frederick, especialista na área da tomada de decisão. Trata-se de uma série de três questões que precipitam uma resposta intuitiva imediata, mas errada (qualquer coisa como «se 5 máquinas demoram 5 minutos a fazer 5 ferramentas, quanto tempo demoram 100 máquinas a fazer 100 ferramentas?», em que a intuição tende para os 100 minutos, mas a resposta correcta é 5). Porém, neste caso, em Princeton, uma pequena nuance foi adicionada ao teste: a metade dos alunos, as perguntas foram fornecidas com legibilidade reduzida (letra pequena e pouco contrastada)1. Um desvio evidente ao programa mínimo. E os resultados, embora inesperados, foram bastante claros: o desempenho foi melhor, precisamente, entre o grupo que tinha as perguntas mal impressas. Presumivelmente, inferiram os investigadores, o esforço adicional de concentração exigido pela fraca legibilidade melhorou a interpretação da pergunta (e, neste caso, ajudou a rejeitar a resposta errada, presenteada pela intuição). A ligeira dificuldade tornou-se num trunfo precioso, o que nos permite ficar com o princípio de uma certeza: o programa mínimo não é resposta para tudo, nem o caminho seguro que aparenta. Dito de forma mais pragmática, nem sempre escolher tipos de letras normalizados ou aumentar o logotipo resolve o problema.
O programa mínimo, de facto, não chega
É pela inevitável insuficiência do programa mínimo nos imperativos da Comunicação que o Design falha, vezes de mais, com as suas responsabilidades. Se olharmos à nossa volta, são muitos os exemplos de suportes de comunicação visual em que, não por culpa exclusiva dos designers (é justo dizê-lo), uma relação harmoniosa e equilibrada entre elementos básicos parece ser suficiente. Imagens politicamente correctas e cautelosamente descritivas, textos alinhados e bem legíveis e o assunto está, sobejamente, arrumado (com sorte, um bom copy disfarça o que podia ser uma tragédia maior). Não existe nada de errado per se, a não ser o facto de, simplesmente, não resultar. Por outras palavras, não existe nada de errado, mas nada está certo.
(...) Se olharmos à nossa volta, são muitos os exemplos de suportes de comunicação visual em que, não por culpa exclusiva dos designers (é justo dizê-lo), uma relação harmoniosa e equilibrada entre elementos básicos parece ser suficiente.
Se olharmos pela perspectiva do público, nesta lógica plana caixa-de-medicamento não sobra espaço para alimentar a dimensão humana que, inevitavelmente, o reveste. Importa não esquecer que nós, humanos, consciente ou inconscientemente, ansiamos por mais do que simples informação. Procuramos histórias e narrativas. Queremos ser envolvidos, desafiados, estimulados. O mistério é importante. Tal como bem defendem Vilayanur Ramachandran e William Hirstein (neurocientista e filósofo, respectivamente), a resolução de problemas perceptuais — ou, por outras palavras, o decifrar de ambiguidades — é uma das fontes de maior prazer que o nosso cérebro retira da fruição da arte. Com a comunicação das marcas não é diferente: quando encontramos um muro plano e cinzento — o programa mínimo aplicado desapaixonadamente — em vez de um mural surpreendentemente colorido, passamos à frente. O óbvio, por mais harmonioso e mais seguro, é demasiado aborrecido para os desígnios humanos. Não desperta os nossos mecanismos de atenção, como ficou, de resto, bem demonstrado no estudo em Princeton.
Ora, gerir a informação nos suportes visuais de forma demasiado racional é pouco mais do que servir o óbvio de bandeja. Não ofende, mas não surpreende. No final, ninguém retém — e, se assim é, não comunica.
(No extremo da escala que o programa mínimo desenha, encontramos, ainda, uma tendência para um minimalismo, muita vezes preocupantemente inócuo. Aqui sim, culpa de uma escola de Design demasiado purista e, talvez, demasiado autocentrada. É importante frisar que, ainda que graficamente apelativo para a classe dos criadores visuais, o formalismo excessivo redunda, com estrondo maior, no mesmo problema que caracteriza a tal incapacidade de fugir ao óbvio: falta de emoção. Colar texto sobre um fundo plano, por melhor a escolha tipográfica e por melhor o alinhamento criado, não deixa pontas soltas para o sonho, para a magia, para a imaginação. Como quem diz, falha na relação com o público, humano e emocional, a quem se destina. É o que podemos chamar de design para designers. E essa é, na verdade, uma abordagem pouco responsável: não será necessário recordar que o público da esmagadora maioria das organizações não se define como designer. Less is more, talvez, mas não tanto.)
Explica-nos o neurocientista português António Damásio que «um fenómeno puramente neural e puramente mental não seria capaz de apreender e arrebatar os seres conscientes da forma intensa, coisa que os sentimentos fazem sem qualquer dificuldade»2. É, pois, responsabilidade do Design orquestrar as suas ferramentas para que a dimensão emocional faça parte do código da mensagem, pois ela faz, definitivamente, parte do código do receptor.
(...) É, pois, responsabilidade do Design orquestrar as suas ferramentas para que a dimensão emocional faça parte do código da mensagem, pois ela faz, definitivamente, parte do código do receptor.
Da táctica para a estratégia das organizações
O programa mínimo é, percebe-se, o conjunto de regras que o Design tem de dominar, com destreza quase científica, para saber onde, quando e como pode quebrar cada uma delas. É um degrau fundamental que deve, por isso, estar bem assente e não pode ser ignorado. Mas não é o objectivo final da escalada.
Em contexto de mercado, a responsabilidade do Design é com a organização, marca, cliente para quem projecta. E isso implica uma consciência apurada além-design. Por outras palavras, além das regras, além dos dogmas e além dos formalismos que tendem a circunscrever o Design em si mesmo. Recordemos, por exemplo, que a importância da impressão com tipos móveis de Gutenberg foi mais do que uma conquista tipográfica: pelo impacto que teve na cultura intelectual da época, a utilização da prensa móvel é hoje apontada como um dos factores responsáveis pela transição da Idade Média para o Renascimento. Uma prova sublime de que o Design não vive na sua própria redoma técnica, mas no contexto social, cultural e económico que o envolve. Nesse sentido, quando fica preso à cinzenta vertente táctica, seja por culpa própria ou de terceiros, não está a cumprir as suas verdadeiras responsabilidades. Está apenas à sombra de um potencial adormecido. Enfim, uma irresponsabilidade.
NOTAS
1. Estudo referido em Kahneman, 2014, p. 91.
2. Damásio, 2017, p. 179.
BIBLIOGRAFIA
Campos, J. (2019). Marca Positiva. Lisboa: Influência.
Damásio, A. (2017). A Estranha Ordem das Coisas. Lisboa: Temas e Debates.
Kahneman, D. (2014). Pensar, Depressa e Devagar. Lisboa: Temas e Debates.
Ramachandran, V. S., & Hirstein. W. (1999). The Science of Art: A Neurological Theory of Aesthetic Experience. Journal of Consciousness Studies, 6, 15-51.